Perto do final do ano passado, passei
alguns meses em Munique.
Em Novembro eu morava na pensão
da senhora Dahlweiner, 1a, Karlstrasse.
Mas os meus aposentos de trabalho eram a
uma milha dali, na casa de uma viúva que aceitava hóspedes para se sustentar.
Todas as manhãs, a meu pedido, ela e seus dois filhos
pequenos falavam alemão para mim.
Um dia, durante um passeio sobre a
cidade, visitei um dos dois estabelecimentos onde o Governo mantém e observa os
cadáveres até que os médicos decidirem que estão efectivamente mortos, e não
num qualquer estado de transe.
Aquela sala ampla era um lugar horrível.
Havia trinta e seis cadáveres de adultos
à vista, deitados de costas em tábuas ligeiramente inclinadas, dispostos em
três longas fileiras - todos eles brancos como a cera, com rostos rígidos, e envoltos
em mortalhas brancas.
Ao longo das paredes da sala estavam
alcovas fundas, como janelas salientes, e em cada uma delas, repousavam vários
bebés de rostos como mármore, totalmente escondidos e enterrados sob flores
frescas, com excepção para os seus rostos e mãos cruzadas.
Em torno de um dedo de cada uma dessas
cinquenta formas fixas, tanto grandes como pequenos, estava um anel, e do anel saía
um fio elevando-se para o teto, e daí para um sino numa sala de vigília, onde, dia
e noite, um vigia fica sempre alerta e pronto para ajudar qualquer um daquela
pálida companhia que, acordando da morte, possa fazer um movimento - porque,
até mesmo a menor contracção, fará mexer o anel e o fio que está ligado ao
sino.
Imaginei-me uma sentinela da morte ali
sozinho, adormecido, numa noite tempestuosa, em silêncio, e num piscar de olhos, pelo súbito clamor de apelos terríveis, todo o
meu corpo feito de geleia trémula !
No dia seguinte, estava a contar à viúva
a minha aventura, quando ela exclamou:
“ Anda
comigo! Eu tenho um hóspede que te pode contar tudo o que queres saber. Ele foi
um vigia da morte”.
Era um homem vivo mas não parecia.
Ele estava na cama, e tinha a cabeça
apoiada em travesseiros altos. Sua face estava perdida e sem cor, seus olhos
fundos estavam fechados, sua mão, deitada sobre o peito, era muito magra e com
dedos longos.
A viúva apresentou-me.
Os olhos do homem abriram-se devagar e
brilharam perversamente desde o crepúsculo de suas cavernas, ele franziu a
testa, levantou a sua mão magra e acenou-nos peremptoriamente para sairmos.
Mas a viúva continuou, até ter dito que
eu era um estranho e era americano. O rosto do homem alterou-se; iluminou-se,
tornou-se ainda ansioso - e no momento seguinte ele e eu estávamos sozinhos.
Eu comecei a conversar em alemão. Ele
respondeu num inglês flexivel. A partir daí demos descanso à lingua alemã.
Este enfermo e eu tornámos-nos bons
amigos. Eu o visitava todos os dias, e nós conversámos sobre tudo. Com a
excepção de esposas e filhos.
Sempre que mencionei a esposa de ninguém ou o filho
de alguém, três coisas aconteceram: uma luz amorosa e terna brilhavam
nos olhos do homem por um momento, depois desapareciam, e em seu lugar vinha
aquele olhar mortal que havia inflamado da primeira vez que eu o vi, e em terceiro lugar, ele deixava de conversar, então
e durante todo aquele dia; ficava em silêncio, ausente, e
aparentemente não ouvia nada do que eu dizia, não respondia às minhas
despedidas, e claramente não sabia, quando eu saía do quarto.
Ao fim de dois meses, de visitas diárias
a Karl Ritter, repentinamente ele disse: “Vou-lhe contar a minha história”.
A
confissão de um moribundo
Então ele contou:
Eu nunca desisti, até agora. Mas chegou
a altura. Eu vou morrer. Tomei consciência ontem à noite que irá acontecer,
e muito em breve.
Você me contou que quando tiver oportunidade, vai rever o seu rio.
Isso, juntamente com uma estranha sensação, senti ontem à noite senti, determina-me que lhe conte
a minha história - para você ouvir falar de
Napoleão, no Arkansas, e por minha causa vai parar lá, e fazer uma coisa para
mim - uma coisa que depois de ouvir a minha
narrativa vai realizar voluntariamente.
Já sabe como é que eu vim para a América
e me instalei naquela região isolada do Sul.
Mas não sabia que eu tinha uma esposa. A
minha mulher era jovem, linda, adorável e tão inocente e gentil. E a nossa
filha era a mãe em miniatura.
Era a mais feliz das famílias felizes.
Uma noite, quase no fim da guerra,
acordei com um súbita letargia e dei comigo amarrado e amordaçado e com um odor
tipico de clorofórmio no ar.
Vi dois homens dentro do quarto e um
dizia para o outro, num murmurio rouco “Eu
avisei-a que o fazia, se ela ou a criança fizessem barulho”
O outro homem interrompeu-o num tom de
voz algo chorosa- “ Tu disseste que
apenas os amordaçavamos para os roubar, e que não lhes faziamos mal, porque caso
contrário eu não tinha vindo”.
“Acaba
já com as lamentações, tivemos que alterar os planos quando elas acordaram, tu
fizeste tudo para os proteger, por isso deixa que isso te satisfaça, agora vem
e ajuda-me a vasculhar”.
Ambos os homens estavam mascarados e
usavam roupas grosseiras, típicas dos negros.
Tinham uma lanterna e, pela sua luz, eu vi
que o ladrão mais gentil não tinha o dedo polegar da mão direita.
Eles vasculharam a cabina durante alguns
instantes, então o bandido que era o chefe disse na sua voz anasalada : “Isto é uma perda de tempo. Ele vai dizer
onde está escondido. Tira-lhe a mordaça e acorda-o”.
O outro disse: “Tudo bem, desde que não lhe batas”
“Não
lhe bato desde que ele se mantenha quieto” respondeu o chefe.
Eles aproximaram-se de mim.
Então ouviu-se um barulho no exterior.
Sons de vozes e cascos. Os ladrões sustiveram a respiração e puseram-se à
escuta. Os sons foram-se aproximando e então alguém gritou: “Oh da casa, acendam a luz, nós queremos água”.
É a voz do
capitão, disse um dos rufiões ao que ambos,
apagaram a lanterna e fugiram pela porta das traseiras.
Os estranhos, que parecia terem cerca de
uma dúzia de cavalos, chamaram por diversas vezes, e foram-se embora.
Eu tentei mas não me consigui libertar.
Tentei falar mas a mordaça era eficaz. Não conseguia emitir nenhum som.
Procurei ouvir a voz da minha mulher e
filha mas não ouvi nenhum som.
Este silêncio tornou-se cada vez mais
terrivel, a cada momento mais ameaçador.
Pobre de mim, que tive de suportar três
horas. Três horas? Foi o mesmo que três anos! Sempre que o relógio tocava,
parecia que tinham passado anos desde que eu o tinha ouvido.
Todo esse tempo eu estava lutando para
me libertar, e finalmente, de madrugada, eu consegui libertar-me, levantei-me e
estiquei os meus membros rígidos.
Era capaz de distinguir os detalhes
muito bem.
O chão estava cheio de coisas atiradas
pelos assaltantes durante a busca das minhas economias.
O primeiro objecto que me chamou especial
atenção foi um documento, que eu tinha visto o mais duro dos rufiões com ele na mão e depois deitar fora.
Tinha sangue nele!
Cambaleei para a outra extremidade do quarto. Oh, pobres inocentes, desamparados, lá jaziam eles, seus problemas
terminados, os meus começados!
Recorri à lei? Será que o indigente matará a sede se o rei
beber por ele?
Oh, não, não, não - eu não queria a impertinente
interferência da lei. Leis e forca não poderiam pagar a dívida que me era
devida!
Permitam as leis deixar o assunto nas
minhas mãos, e não tenham medo: Eu iria encontrar o devedor e cobrar a dívida.
Como conseguir isso, você diz?
Como o conseguir, e sentir tanta certeza
sobre isso, quando não tinha nem visto o rosto dos ladrões, nem ouvido as suas
vozes naturais, nem tinha qualquer idéia de quem eles poderiam ser?
No entanto, eu tinha certeza - a
certeza absoluta.
Eu tinha uma pista - uma pista que você
não teria valorizado - uma pista que não teria ajudado muito mesmo sendo um
detetive, já que ele não teria o segredo de como a aplicar.
Voltarei a este assunto.
Por agora, vamos levar as coisas pela
sua ordem.
Houve uma circunstância que me deu uma indicação
de qual a direcção por onde começar: Os dois ladrões eram manifestamente
soldados disfarçados de vagabundos, não eram novatos no serviço militar, mas
antigos, as atitudes militares, os gestos, a postura, não se adquirem num
dia, nem num mês, nem num ano.
Assim, eu o pensei mas não o disse a ninguém.
E um deles tinha dito “a voz do
capitão...” e esse era aquele cuja vida eu iria tirar.
Havia vários regimentos e duas
companhias de cavalaria acampadas a duas milhas de distância.
Quando soube que, naquela noite, o
Capitão Blakely, da Companhia C tinha passado pela minha casa com uma escolta,
não disse nada, mas resolvi procurar o bandido naquela companhia.
Nas conversas tidas sempre descrevi os
ladrões como vagabundos; ninguém desconfiava de soldados. Apenas eu.
Trabalhando pacientemente, de noite, em
minha casa desoladora, fiz um disfarce para mim; no vilarejo mais próximo eu
comprei um par de óculos azuis.
Quando o acampamento militar acabou, e a
Companhia C foi enviada para Napoleão, cem milhas mais a norte, juntei o meu
dinheiro e parti durante a noite.
Quando a Companhia C chegou a Napoleão, já eu lá estava.
Sim, eu estava lá, com uma nova
profissão - vidente.
Para não parecer parcial, fiz amigos e
previ o futuro entre todas as companhias lá aquarteladas, mas dediquei à companhia
C, a grande parte das minhas atenções.
Fui ilimitadamente dedicado para
esses homens específicos
Não havia favor que eles me pedissem que
eu não aceitasse.
Tornei.me o alvo das suas piadas, o que aperfeiçoou
a minha popularidade, tornei-me um favorito.
Depressa encontrei um soldado que não
tinha um polegar - que alegria foi para mim! E quando descobri que, de toda a
companhia, só ele, tinha perdido um dedo polegar, a minha apreensão quanto à
possibilidade de errar desapareceu, eu tinha certeza que estava no caminho
certo.
O nome deste homem era Kruger, um
alemão. Havia nove alemães na Companhia.
Eu observava, para ver quem poderiam ser
os seus íntimos, mas ele parecia não ter amigos íntimos especiais.
Mas eu era seu íntimo, e tomei o cuidado
de fazer a intimidade crescer.
Por vezes eu ansiava tanto por minha
vingança que mal podia conter-me de cair de joelhos implorando-lhe para apontar
o homem que havia assassinado minha esposa e filho, mas consegui refrear a minha
língua.
Esperei, e comecei a prever o destino de
cada um dos soldados, quando aparecia a oportunidade.
O meu equipamento era simples: um pouco
de tinta vermelha e um pedaço de papel branco.
Eu pintava a ponta do dedo do cliente,
fazia uma cópia do mesmo no papel, estudava-o durante a noite, e revelava qual a sua
sorte no dia seguinte.
Qual era a minha idéia nesse absurdo?
Era esta: quando era novo, conheci um
idoso francês que tinha sido guarda numa prisão durante trinta anos, e que me
disse que existia uma coisa numa pessoa que nunca mudava, do berço até ao
túmulo. As linhas que temos nas pontas dos polegares.
Ele disse-me que estas linhas nunca eram
exactamente iguais nos polegares de duas pessoas.
Hoje nós fotografamos os criminosos e
colocamos as suas fotografias nas Rogues'
Gallery para referência futura.
Mas aquele francês, utilizava a
impressão das pontas do dedo polegar dos novos presos e guardava-os para
referência futura.
Ele sempre me dizia que as fotografias
não eram boas, porque futuros disfarces as tornavam inúteis.
Dizia também que “O polegar é a única coisa segura. Não o consegues disfarçar.”
E costumava provar a sua teoria utilizando
os meus amigos e conhecidos. Teve sempre sucesso.
Eu fui dizendo fortunas e prevendo sortes.
Todas as noites me tranquei, sozinho,
e com uma lupa, estudei as impressões do dedo polegar tiradas naquele dia.
Imagine a ansiedade com que eu se debrucei sobre essas espirais labirínticas vermelhas, tendo ao meu lado o documento
que tinha o dedo polegar da mão direita do assassino desconhecido, impresso com
o sangue mais amado - para mim - que foi derramado nesta terra!
E muitas e muitas vezes eu tive que
repetir a mesma velha observação de desapontamento, "será que NUNCA MAIS correspondem?”
Por fim a minha recompensa chegou.
Era a impressão do polegar do 43º homem
da Companhia C que eu experimentei - era o soldado Franz Adler.
Uma hora antes eu não sabia o nome do
assassino, ou a voz, ou a compleição ou a face ou a nacionalidade, mas agora
sabia todas estas coisas.
Eu acreditava que podia ter a certeza.
As repetidas demonstrações do francês eram uma boa garantia.
Apesar disso, havia uma forma de confirmar.
Eu já tinha a impressão do dedo polegar da
mão esquerda de Kruger. De manhã quando ele estava fora de serviço, abordei-o e
quando estávamos sozinhos e sem testemunhas disse-lhe:
"Uma parte de sua sorte é tão grave, que eu pensei que seria melhor para
você eu não dizer isso em público. Você e um outro homem, cuja fortuna estava
estudando ontem à noite, - o soldado Adler, - foram assassinar uma mulher e uma
criança! Vocês estão sendo perseguidos: no prazo de cinco dias, ambos vão ser
assassinados ".
Ele caiu de joelhos, de cabeça perdida,
e por cinco minutos, manteve o mesmo conjunto de palavras, como uma pessoa
demente, e no mesmo tom que foi uma das minhas memórias daquela noite assassina
na minha casa.
“Eu
não o fiz. Pela minha alma que não o fiz e tentei impedir que ele o fizesse.
Deus é minha testemunha. Ele fez aquilo sozinho.”
Era tudo o que eu queria. Tentei
livrar-me daquele tonto mas ele abraçou-me implorando que o salvasse do
assassino. Ele disse:
“eu
tenho dinheiro escondido – 10 mil dólares – o resultado das pilhagens e dos
roubos. Salve-me, diga-me o que fazer e terá o dinheiro todo. Dois terços é do
meu primo Adler mas você pode ficar com todo. Escondemo-lo quando aqui
chegámos, mas ontem eu fui escondê-lo moutro lugar e não lhe contei. Eu ia desertar
e levar o dinheiro todo. É ouro e muito pesado para transportar quando estamos
em fuga mas uma mulher ajudou-me, vai seguir-me com o ouro.
Combinámos que se eu não tiver hipótese de lhe descrever o esconderijo lhe envio
o meu relógio de prata e ela irá entender. Há um papel na parte traseira do
relógio, que explica tudo. Tome o relógio e diga-me o que devo fazer. “
Ele estava a tentar dar-me o relógio e a
mostrar-me o papel quando surgiu Adler a alguns metros de distância.
Eu disse ao pobre Kruger: “põe o relógio, eu não o quero. Não sofrerás
nunhum dano. Vai-te embora, agora. Eu tenho que dizer a Adler qual é a sua
sorte. Vou-te explicar como podes escapar do assassino. Eu vou ter que
reexaminar a impressão do teu dedo. Não digas nada ao Adler nem a ninguém”
Ele foi-se embora cheio de medo e
gratidão, pobre diabo.
Propositadamente eu disse a Adler uma
longa previsão de fortuna; prometi-lhe que, estando de guarda naquela noite, eu
viria ter com ele e contar-lhe a parte realmente importante - a parte
trágica, disse eu - por isso deve ficar fora do alcance de curiosos.
Eles sempre mantiveram um piquete de
vigia fora da cidade - mera disciplina e cerimonial - nenhum motivo para isso,
nenhum inimigo por perto.
À meia-noite, equipado com a
contra-senha desloquei-me para o local onde Adler iria fazer o seu turno de
vigia. Estava tão escuro que esbarrei numa figura mesmo antes de ter tempo de
dizer a senha de protecção.
A sentinela sinalizou e eu respondi ao mesmo tempo.
Apenas acrescentei “sou eu, o vidente”.
Então coloquei-me ao seu lado e, sem uma
palavra dirigi o meu punhal directamente ao coração do pobre diabo.
YA WOHL, ri-me, esta era a tragédia da sua sina!
Quando caiu do cavalo, agarrou-se a mim e os meus óculos azuis ficaram na
sua mão. O cavalo assustou-se e fugiu, arrastando-o, com um pé ainda no
estribo.
Fugi pelos matos, e escapei, deixando os óculos acusadores nas mãos do
morto.
Isto foi há quinze ou dezasseis anos.
Desde então, tenho vagueado sem rumo, às vezes com trabalho, às vezes inativo, às vezes com dinheiro,
às vezes sem, mas sempre cansado da vida, desejando que depois do que foi
feito, com o ato daquela noite, a minha missão aqui terminou, e o único prazer,
conforto, satisfação que eu tive, em todos esses anos, estava na
reflexão diária, "eu matei-o!".
Há quatro anos, a minha saúde começou a
falhar.
Eu tinha vagueado em Munique, sem qualquer finalidade.
Estava sem dinheiro, procurei trabalho, e consegui; cumpri fielmente a minha
obrigação aproximadamente durante um ano, e foi então que surgiu a vaga de
vigia nocturno ali naquela casa mortuária, que você visitou recentemente.
O lugar adequado para o meu humor.
Gostei. Gostava de estar com os mortos - gostava de estar sozinho com eles.
Eu costumava passear entre os corpos
rígidos, e espreitar os seus rostos austeros, uma vez por hora.
Quanto mais tarde a hora, mais
impressionante era, eu preferia as horas tardias.
Algumas vezes apaguei as luzes: isso me
dava outra perspectiva, e sempre podia dar largas à imaginação, o escuro me
inspirava com estranhas e fascinantes fantasias sobre os mortos.
Dois anos atrás – já lá estava há um ano
- eu estava sentado sozinho na sala de vigília, era uma noite tempestuosa de
inverno, enregelado, entorpecido, sem conforto; gradualmente adormecendo para a
inconsciência; os golpes do vento e o bater das persianas ficando cada
vez mais longe, quando, de repente, o sino dos mortos tocou
forte com um rebate horripilante sobre a minha cabeça!
O choque quase me paralisou, pois era a
primeira vez que eu o tinha ouvido.
Recompus-me e voei para a sala dos
cadáveres. A meio da fila exterior,
estava sentada uma figura envolta numa mortalha, balançando a cabeça
lentamente de um lado para o outro - um espetáculo terrível!
Estava de lado para mim.
Corri para ele e olhei para seu rosto.
Meu Deus, era Adler!
Você consegue adivinhar qual foi o meu
primeiro pensamento?
Posto em palavras, era este:
"Parece, então, que você me escapou uma vez: haverá um resultado diferente
desta vez!"
Evidentemente que esta criatura estava a
sofrer terrores inimagináveis.
Pense o que deve ter sido acordar no
meio do silêncio daquela multidão sem voz, e, deparar com aquela congregação de
mortos!
Que gratidão brilhou em seu rosto magro
branco, quando viu uma forma viva aproximar-se dele!
E como o fervor desta gratidão foi
aumentada quando seus olhos caíram sobre os xaropes vivificantes que eu
carregava em minhas mãos!
Em seguida, imagine o horror que veio a
este rosto comprimido quando eu afastei os xaropes, e disse ironicamente –
“Fale Franz Adler – recorra a estes
mortos. Sem dúvida, eles vão ouvir e ter piedade, mas aqui não há mais ninguém
que o faça ".
Ele tentou falar, mas aquela parte da
mortalha que ligava os seus maxilares, manteve-se firme e não deixou.
Ele tentou levantar as mãos suplicantes,
mas elas estavam cruzadas sobre o peito e amarradas.
Eu disse:
'Grite, Franz
Adler; faça os adormecidos nas ruas distantes ouvi-lo e trazer ajuda. Grite - e
não demore. O quê, você não pode? É uma pena, mas não
importa - não podem ajudar. Quando você e seu primo assassinaram uma mulher
indefesa e criança numa cabana em Arkansas - minha esposa e meu filho - que
gritaram por ajuda, você se lembra;! Mas não adiantou nada, você se lembra que
fez mal, não é assim? Seu ranger de dentes - porque é que você não pode gritar?
Solte as ligaduras com as mãos – depois já pode. Ah... tem as mãos atadas, não
lhe servem de muito. È estranho como a situação se repete, depois de tantos
anos, porque, naquela noite as minhas mãos estavam atadas, lembra-se? Sim muito
mais atadas do que as suas estão hoje. Não me conseguia libertar e não lhe
ocorreu libertar-me. Hoje não me ocorre libertar-lo a si. Está alguém lá fora.
Está perto. Grite. É a única hipótese. Demorou-se e foram-se embora. Pense
nisso. Ouviu passos humanos pela ultima vez.”
A agonia naquele rosto entrapado foi
extasiante. Pensei numa nova tortura e apliquei-a.
“O
pobre Kruger tentou salvar a minha mulher e filha e eu demonstrei a minha
gratidão. Convenci-o a roubar o dinheiro dos vossos crimes e eu e uma mulher
ajudámo-lo a desertar e a fugir em segurança”.
Um olhar de surpresa e de triunfo
brilhou fracamente através da angústia no rosto da minha vítima. Fiquei
perturbado e perguntei:
“Então
ele não escapou?” Adler abanou negativamente a cabeça.
“Não?
O que aconteceu?”.
A satisfação no rosto de Adler foi ainda
mais claro. O homem tentou balbuciar algumas palavras - não teve sucesso,
tentou expressar algo com as mãos obstruídas - mas falhou; parou por um instante,
então debilmente inclinou a cabeça, de um modo significativo, para o cadáver
que estava mais próximo dele.
“Morto? Na fuga? Foi descoberto e
mataram-no?” Adler abanou negativamente a cabeça.
“Então
como foi?”
Novamente, o homem tentou fazer algo com
as mãos. Observei de perto, mas não podia adivinhar a intenção. Inclinei-me e
vi ainda com mais atenção. Ele torceu o polegar e foi fracamente puncionando o
peito com ele.
"Ah - esfaqueado, quer você dizer? '
Aceno afirmativo, acompanhado por um
sorriso diabólico espectral de tal forma peculiar, que um raio de luz atingiu o
meu cérebro lento, e eu chorei -
“Fui
eu que o apunhalei, pensando que era você?”
O aceno afirmativo do patife foi tão alegre
quanto suas forças lhe permitiram colocar em sua expressão.
“Ah,
como sou miserável e infeliz, por abater a alma piedosa que foi amigo de meus
entes queridos, quando eles estavam desamparados, e os teria salvo se pudesse!”
Imaginei que ouvi o murmúrio abafado de
uma gargalhada, zombando.
Tirei as mãos da cara e vi meu inimigo
afundando-se de volta em cima de sua tábua inclinada.
Foi um tempo satisfatóriamente longo para
ele morrer. Tinha uma vitalidade maravilhosa, uma constituição física surpreendente.
Arranjei uma cadeira e um jornal, e
sentei-me ao lado dele a ler.
Às vezes, tomei um gole de conhaque.
Isto era necessário, em virtude do frio.
Mas, em parte, fiz isso porque vi que,
quando pegava na garrafa, ele pensou que eu lhe ia dar-lhe algum.
Eu li em voz alta: contas imaginárias,
principalmente de pessoas arrebatadas do limiar da tumba e que voltaram à vida e
vigor devido a uns goles de licor e um banho quente.
Sim, ele teve uma morte longa e difícil
- três horas e seis minutos, a partir do momento que ele tocou o sino.
Acredita-se que nos dezoito anos
decorridos desde a criação da instituição de vigia dos cadáveres, nenhum dos
ocupantes das casas mortuárias tenha tocado o sino. É uma crença
inofensiva.
Deixemo-la ficar como está.
O frio daquela câmara da morte penetrou
nos meus ossos, e apressou a doença que me vinha afligindo, mas que, até
aquela noite, tinha vindo a desaparecer.
Aquele homem assassinou a minha mulher e
o meu filho, e poderia ter-me adicionado à sua lista.
Apanhei-o a escapar do túmulo e meti-o
de novo dentro dele.
Depois dessa noite, estive de cama
durante uma semana, mas assim que recuperei fui aos registos da casa funerária
e obtive o endereço da casa em que Adler tinha morrido.
Era uma hospedaria miserável. A minha
ideia foi que, naturalmente ele teria ficado com os bens de Kruger porque era
seu primo. Eu queria recuperar o relógio de Kruger.
Mas enquanto estive doente, com a
excepção de algumas cartas antigas e peças sem qualquer valor todas as coisas
de Adler tinham sido vendidas e dispersadas.
Apesar disso, pelas cartas localizei um
filho de Kruger, que também era o único parente vivo.
Actualmente tem 30 anos, é um sapateiro
que vive em Mannheim, viúvo com várias crianças pequenas.
Desde então, sem lhe
dar qualquer explicação, tenho provido dois terços das suas necessidades.
Quanto ao relógio - veja quão estranhas as
coisas acontecerem! Eu procurei-o na Alemanha por mais de um ano, e com um
custo considerável em dinheiro e aflição, finalmente consegui.
Consegui, e fiquei incrivelmente
feliz, abri-o, e não encontrei nada nele!
Eu devia saber que aquele pedaço de
papel não ia ficar lá todos estes anos.
Claro que então desisti daqueles dez
mil dólares, em seguida, nunca mais me lembrei do assunto. Eu queria
o dinheiro para entregar ao filho de Kruger.
Ontem à noite quando finalmente me convenci
que vou morrer, comecei a fazer os preparativos.
Ia queimar todos os papéis inúteis e de
repente, entre os papéis de Adler encontrei o papel que estava na traseira do
relógio.
Diz assim: “Tijolo, estábulo, fundação de pedra, centro da cidade, esquina de
Orleães e Mercado. Canto virado para o Tribunal. Terceira pedra, quarta coluna.
Coloque aviso, dizendo quantos homens vêm”.
Tome e guarde-o.
Kruger explicou que
aquela pedra era removível e que era na parede norte, quarta coluna a contar do
tecto e Terceira pedra do lado oeste. O dinheiro está por detrás dela.
Ele
disse que a ultima frase era falsa para enganar caso o papel fosse parar às
mãos erradas. Provavelmente ele estava a pensar em Adler.
Agora quero-lhe pedir que quando fizer a
sua viagem pelo rio abaixo, recupere o dinheiro que está escondido e o envie a
Adam Kruger, para o endereço Mannheim que mencionei. Irá fazer dele um homem
rico e eu poderei morrer em paz por saber que fiz tudo o que pude pelo filho do
homem que tentou salvar a minha mulher e filho – não obstante a minha mão
ignorante o tenha apunhalado, mas considerando que o impulso do meu coração
tenha sido para o proteger e servir.
Naquela altura - em 1883 - Mark Twain foi provavelmente, a única pessoa que nos Estados Unidos da América escreveu
sobre as impressões digitais como ferramenta de combate ao crime.
Possivelmente, a inspiração de Mark Twain
resultou do texto publicado por Henry Faulds na revista Nature em 1880.
Dez anos mais tarde, Mark Twain voltaria a
colocar as impressões digitais como tema central na obra “ A Tragédia de Pudd'nhead Wilson”.
Alguns autores referem esta obra terá contribuído para estabelecer a utilidade das impressões digitais na consciência da
população norte-americana.
Também aqui Mark Twain esteve à frente do
seu tempo porquanto as entidades oficiais foram mais lentas a perceber o
potencial das impressões digitais.
A utilização sistemática de impressões
digitais nos EUA foi em 1903.
O sistema nacional de impressões digitais
dos EUA foi implementado em 1924.