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sábado, 21 de janeiro de 2012

O Crime do Guincho



Com apenas 30 anos, Correia das Neves, recém-nomeado inspector da Polícia Judiciária de Lisboa, vê cair-lhe nas mãos o difícil crime do Guincho, com evidentes contornos políticos.

Estamos em 1960.

O caso, que abalou o País e exigiu do magistrado um improvável sangue frio, é agora dissecado pelo próprio, em forma de livro.

Na manhã chuvosa de 31 de Março de 1960, um homem foi encontrado morto no areal da Praia do Guincho.

Os cães, que já haviam desenterrado parte do cadáver, deram o alerta.

Acabado de ser nomeado, em comissão de serviço, inspector da Polícia Judiciária de Lisboa, Francisco Correia das Neves, então com apenas 30 anos, recebe o caso sem sequer imaginar o mês de difíceis provas que lhe estava reservado.

O morto não era um mero cidadão comum, silenciado numa qualquer rixa sem importância.

Tratava-se do capitão Almeida Santos, um dos militares que andavam a monte pelo envolvimento na chamada revolta da Sé, decorrida havia um ano.

Um crime que fazia recair suspeitas sobre várias pessoas e organizações. Desde logo, sobre a PIDE, tratando-se, como era, de um opositor ao regime. O Governo, os jornais, a opinião pública, exigiam um desfecho rápido.

Correia das Neves, que mais tarde haveria de estabelecer-se em Beja como advogado, sentiu-se "a pessoa mais poderosa de Portugal naqueles dias" e o caso foi resolvido, apesar das dúvidas que ainda hoje persistem.

Teriam os companheiros de fuga, aspirante Jacques e cabo Gil, decidido o crime pela "divergência de critérios" quanto à condução das actividades políticas a que clandestinamente se dedicavam, e sobretudo pelo receio de que o capitão os denunciasse, ou seria esta apenas a capa de um móbil passional, envolvendo Maria José, a bela e manipuladora companheira de Almeida Santos?

O antigo inspector coloca todas as cartas em cima da mesa, no livro Crime do Guincho, uma edição do autor que pretende ser a "palavra que faltava" para esclarecer a trama que inspirou a Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires, entre muitos outros escritos.

Conduziu as investigações do chamado crime do Guincho, enquanto inspector da Polícia Judiciária de Lisboa, há mais de 40 anos. Porquê agora este depoimento, em forma de livro?

Primeiro, porque gosto de escrever, segundo porque tem interesse técnico-judicial, terceiro porque tem interesse histórico, cultural e político.

E depois porque, embora ninguém me tenha afrontado, nem depois do 25 de Abril, sobre o assunto, o que é certo é que, por razões políticas que não tinham nada a ver comigo, houve alguns escritos que, quem os ler, seca e friamente, e não conhecer com verdade a história, pode admitir que a Judiciária e particularmente eu, que era o inspector da investigação, pudesse estar a fazer algum frete político a alguém.

Chegou-se a escrever coisas que podiam levar a pensar nisso, designadamente um livro do pai do doutor Cunha Leal, figura destacada da I República e que era grande adversário do regime.

Numa carta que dirigia a Salazar, dizia que estavam a atacá-lo na pessoa do filho, que foi preso, e que as polícias, incluindo a Judiciária, tinham urdido uma trama para incriminar o filho e que todos eram ditadorzinhos e serventuários do regime.

O homem, se escreveu o livro e o publicou, é para ajudar a fazer a história.

Ora, eu então resolvi escrever o meu, também por isso. Simplesmente não tive pressa, tinha a minha consciência tranquila.

Diz, no prefácio, que este livro "pode ser a palavra que faltava". Considera que as diversas abordagens que foram feitas em torno do caso se revelaram lacónicas?

Foi um caso que teve enorme repercussão social, cá e mesmo lá fora.

Além das abordagens normais e sucessivas pela imprensa, foi considerado tão rico para certas experiências que deu lugar à publicação de vários livros.

O próprio escritor José Cardoso Pires serve-se do tema para publicar a sua Balada da Praia dos Cães.

Embora o livro seja apresentado como ficção, eu posso dizer que é uma ficção misturada com realidade e há mesmo no livro pormenores, tão coincidentes com o real, que só podiam ser conhecidos por quem, ou examinou o processo, ou recebeu informação de alguém metido no processo.

Depois, foi feito o filme do Fonseca e Costa baseado no livro.

Cada um viu as coisas como calhou, cada um terá tido a sua interpretação; o assunto foi desvirtuado, também por razões políticas.

Por exemplo, o escritor José Cardoso Pires descreve os acontecimentos, reinventa o caso, mas segundo a direcção que lhe interessava.

O livro está muito politizado, em meu entender.

Depois do 25 de Abril, já os homens tinham cumprido a pena e já cá estavam fora, ainda um senhor mandou uma carta para um jornal que existiu, chamado "Tempo Novo", a perguntar por que não se abria o caso do Almeida Santos, que tinha sido morto pela PIDE.

Por acaso não foi, mas é verdade que tivemos que admitir todas as hipóteses.


Como é que a Judiciária soube do sucedido?

Quem comunicou foi a Capitania do Porto de Cascais, que tinha aparecido um homem na areia, meio desterrado, encontrado por uns pescadores de Peniche, que costumavam vir para a zona do Guincho ao berbigão.

Vinham de baixo, do mar, o areal é a subir, e viram um cão a fossar na areia.

Da capitania telefonaram para o piquete da Judiciária.

Em terra de brandos costumes, impressionou-o particularmente a violência implícita no caso?

A vida da Judiciária, sobretudo numa casa como a de Lisboa, era uma vida relativamente dura.

Tínhamos casos chocantes, no aspecto humano; de vez em quando tínhamos que ver pessoas mortas, maltratadas, faziam-se exumações...

Mas depois – não digo que a gente endureça ou fique insensível – começamos a lidar com alguma naturalidade com cenas destas.

A impressão que me causou, no aspecto humano e emocional, foi a mesma de outras situações.

Agora, o que logo me pareceu é que era um caso muito estranho.

Ele estava enterrado perto da estrada, a 56 metros, e mal enterrado.

E estava longe do mar, ou seja, as águas não chegavam cá acima.

A hipótese de ser uma pessoa afogada que tinha dado à praia não se punha. O mais natural era haver crime.

Foi-se escavando devagar, foi-se fotografando – nada se pode desprezar na altura – e depois começou a ver-se que não havia quaisquer elementos de identificação.

Estava com uma camisola de lã, tinha os sapatos trocados, só tinha o relógio.

Havia uma mancha de sangue e isso é importante porque indicava que não tinha sido morto muito longe e não tinha sido morto ainda há muito tempo antes do enterramento.

Nesse caso, como foi possível identificar o cadáver?

Foi um caso difícil, uma investigação complicada.

A Judiciária desenvolveu uma actividade grande e até se fizeram diligências e operações que não eram vulgares na altura, como seja a identificação que conseguimos fazer do cadáver, através de um processo muito especial que foi a primeira vez que se praticou cá em Portugal, segundo se pensa.

A recolha das impressões digitais foi feita na parte interna da epiderme dos dedos porque o lado de fora, dado o estado de decomposição do cadáver, já não dava impressões legíveis, através do processo clássico, da estampagem.

Este foi o passo decisivo: se não se identifica o cadáver, o mais natural seria não se ter descoberto absolutamente nada.

Uma vez identificado pelo serviço de lofoscopia da Polícia Judiciária, foi feita a busca no Arquivo Geral do Registo Criminal e, só na segunda consulta, foi encontrado o dactilograma.

Lá estava o nome dele, José Joaquim Almeida Santos, capitão de cavalaria.

Para além de um nome e de uma patente, que história de vida desvendava a identificação?

Tratava-se de um capitão que estava envolvido num intentona que na altura ficou conhecida por intentona dos capitães e também revolta da Sé.

Como estava preso por causa disso e iria ser julgado, embora no Tribunal Militar, é natural que muita gente tenha pensado que ele poderia ter sido morto pelas forças da ordem, designadamente a PIDE.

Mais a mais, ele e os outros correligionários tinham fugido do Forte da Graça, em Elvas, onde aguardavam julgamento.

Como foi feito o acompanhamento das investigações, quer por parte da imprensa, quer por parte da opinião pública mais informada e politizada?

Aquilo transpirou, a imprensa andava sempre por lá.

Eu era assediado a toda a hora, lembro-me muito bem.

Até me lembro, no dia em que se prenderam as pessoas, de um jornal que dizia assim: o inspector não pôde acrescentar nada, mas pelo seu aspecto bem disposto parece que as coisas estão próximas do esclarecimento.

Fui abordado várias vezes por jornalistas, de vez em quando a Judiciária fazia uma notas oficiosas, que eram distribuídas à imprensa.

Na altura, o País estava suspenso.

O próprio Governo também, porque o Salazar não sabia quem o tinha morto.

Chegaram a mandar-me cartas anónimas a dizer que tinha sido a PIDE.

Aquilo tanto podia ir ter às forças da ordem, como aos comunistas, aos clandestinos, como ao grupo dele.

Havia muita gente que dizia que eram os comunistas, a força política mais forte.

Em plena ditadura – estamos em 1960 – e tendo em conta a natureza do caso recebeu algum tipo de directiva política sobre como conduzir as investigações?

Depois de se saber quem era o falecido, o País ficou suspenso e ávido.

Foram dias terríveis.

A coisa era tão séria que eu fui a pessoa mais poderosa do País naqueles dias, mas não me deixei iludir nem seduzir.

Eu podia fazer o que quisesse, para ver se o assunto se descobria.

Mas nessas alturas, é preciso ser humilde e saber usar do poder.

Há muita coisa que se diz, por causa da política – é o que estraga tudo, é a política.

A verdade é que nunca ninguém me deu uma ordem de carácter político, do género aquele indivíduo é contra o Salazar, temos que o meter na ordem.

Nunca.

O que foi determinante para perceber que se tratava de um homicídio e, como se viria a descobrir, perpetrado por companheiros de fuga?

A investigação teve dois momentos decisivos: a identificação do cadáver e o ter-se conseguido que o tenente Maldonado Sequeira, irmão da companheira do morto, me tivesse levado ao local onde eles tinham estado na clandestinidade, depois da fuga de Elvas.

Acabaram por se refugiar na vivenda Pino Verde, Rio de Mouro, em Sintra, onde se tinha verificado a morte.

Eu consegui – um trabalhinho horrível – que o tenente me levasse lá, mas com a condição de o deixar estar primeiro, durante um quarto de hora, com a irmã e a mãe, que era quem fazia os contactos exteriores do grupo, já que a PIDE não a conhecia.

Eu tive que aceitar.

No caminho, pediu para ir pôr a malas em casa e eu, ingenuamente, disse que sim.

Daí a um bocado lembro-me: o telefone.

Assim foi: ele telefonou para a irmã e eles fugiram.

Talvez tenha sido melhor assim, porque eles eram um bocado avariados.

Nós levávamos armamento e eles também estavam armados; se eles reagissem está ver o que é que podia ser.

E Maria José, a companheira do capitão, qual era o seu papel no "grupo"?

Tomámos conta da casa, fizeram-se buscas, tiraram-se impressões digitais, e ela, a Zezinha, que tinha ficado, veio comigo para a Judiciária.

A casa ficou ocupada durante três ou quatro dias.

Gozou de um regime especial, até nem dormia na secção prisional, dormia no quarto do piquete e eu, para não a estar a castigar.... Enfiou-nos o barrete durante 15 dias.

Nós desconfiávamos disso mas não usámos de violência nenhuma.

Durante 15 dias, ela manteve esta versão: que o Almeida Santos havia saído de noite, no dia 16 de Março, para ir para um encontro importante, e que nunca mais tinha aparecido.

Disse também uma coisa muito chata que levou depois à prisão do Cunha Leal: que o Almeida Santos tinha recebido uma carta do Cunha Leal, seu amigo e também correligionário político, e que saiu a dizer que ia ter um encontro importante.

Muitas pessoas devem ter pensado: prenderam o homem porque é contra o Salazar e é filho do outro, um engenheiro que era um adversário conhecido do Salazar.

E não é verdade.

Tivemos necessidade de o prender porque ele foi notificado mas depois desapareceu.

Chegámos à conclusão de que o homem não tinha nada a ver com o crime e isso fez-nos aumentar as suspeitas graves de que ela estava metida no crime ou que estava a mentir, a praticar o crime de falso testemunho.

Depois, foi para o regime comum, para a cela e, no dia seguinte, mandou dizer pelo guarda que queria falar comigo.

Quando veio, contou tudo.

Quem eram, afinal, os autores e o que os levou a abater um companheiro?

Esta efervescência política ficou desde a candidatura do Humberto Delgado; eles eram quase todos apoiantes do Humberto Delgado e depois desentenderam-se entre eles e o aspirante com o cabo mataram o outro.

Isto foi o que se veio a saber depois.

Através das pessoas que ouviu, muitas delas militares, teve acesso privilegiado aos meandros do exército.  
 Quinze anos antes do 25 de Abril, já se verificavam muitas movimentações políticas?

Por causa da investigação, tive que falar com eles todos.

Eles eram um bocado idealistas mas também um bocado desaparafusados.

Através do que disse a Zézinha, da confissões do Jacques e do cabo Gil, do que ouvi aos oficiais presos na Trafaria, eu apercebi-me que as Forças Armadas estavam politicamente minadas.

Mas eu não fazia investigação política, os tentáculos políticos já não interessavam à investigação do crime.

Nessa altura, fiquei a pensar que o 11 de Março de 1959 tinha sido o primeiro ensaio do 25 de Abril, mas isto é apenas uma opinião.

Não averiguei isso nem tinha que averiguar.

Depois, o problema do Ultramar começa em 1961, as tropas começaram a ir para lá e houve ali uns anos de acalmia política dentro das Forças Armadas.

Eles eram militares, tinham que ir, o sistema funcionava.


Seguiu o percurso do Jacques e do cabo Gil?

Antes de o Jacques ter saído da Penitenciária de Coimbra, a mãe escreveu-me quando eu era juiz em Cuba, para ver se o filho tinha a liberdade condicional.

Eu dei-lhe os meus conselhos, ele segui-os e viu que eu lhe falei verdade, e então só cumpriu metade da pena, pouco mais.

Ele chegou a trabalhar na Biblioteca e dava também umas aulas.

Ele era médico.

Na altura da confissão eu disse-lhe: sei que você é da chamada gente boa, sei que você foi bom aluno na faculdade de medicina, sei que foi colega do meu cunhado e você, se fez isto, é porque teve razões fortes ou entendeu que eram razões fortes.

Foi assim que eu lhe falei e foi assim que ele confessou.

Quando saiu da cadeia, veio aqui e deixou-me um cartão a agradecer, assinado por ele e pela mãe.

Do cabo Gil, ouvi dizer que era electricista e que também beneficiou da liberdade condicional.

Foi, depois, louvado por portaria do Ministério da Justiça, justamente pelo seu desempenho nessa investigação...

O Salazar, contou-me o director da Judiciária, disse: temos que dar uma recompensa ao rapazinho.

O rapazinho era eu, tinha 30 anos.

Na altura, disseram-me para indicar quem é que havia de ser louvado.

Eu indiquei o chefe de brigada.

Quanto aos agentes, tornava-se difícil porque eles foram muitos, uns 10 ou 11.




Jurista, político de passagem e investigador incansável

Nascido em Oliveira do Hospital, em 1929, embora o casamento o tivesse conduzido a Beja, onde hoje reside, Francisco Correia das Neves cursou Direito em Coimbra, após o que, em 1955, tomou posse do cargo de delegado do Procurador da República, exercendo funções nas comarcas de Serpa, Cuba e Alcobaça.

Ainda em início de carreira, com apenas 30 anos, é nomeado, em comissão de serviço, inspector da Polícia Judiciária da subdirectoria de Lisboa, justamente quando estala o difícil caso da morte do capitão Almeida Santos, encontrado por pescadores no areal do Guincho.

Dadas as implicações políticas do crime – muitos suspeitavam da "mãozinha" da PIDE no silenciamento do militar que havia estado envolvido na intentona da Sé – Correia das Neves sentiu o peso de um País de olhos postos nas suas decisões. Foram três semanas duras, inesquecíveis – uma verdadeira prova de fogo.

Uma década depois, quando já advogava em Beja, depois de um curto percurso na magistratura, com paragem na comarca de Cuba, Correia das Neves envolve-se na actividade política "por ditames do acaso", como refere no prefácio de O Crime do Guincho.

A confiança num novo momento político, a chamada Primavera Marcelista, levam-no à Assembleia Nacional, onde foi deputado entre 1969 e 1973.

Com ele, são também eleitos Mota Amaral, o mais novo dos "novos" da União Nacional, Sá Carneiro, Magalhães Mota e Pinto Balsemão, entre muitos outros que desejavam "uma evolução, mas pacífica, do regime e da situação político-económico-social".

Terminou a actividade parlamentar – de que se destaca um pedido de amnistia que abrangesse os presos políticos – não sem alguma desilusão mas, pelo menos, com a convicção da "generosidade" do projecto que ali o havia conduzido.

À margem da justiça e da política, escreve. E investiga, sempre.

São da sua autoria inúmeros trabalhos, nas áreas da Poesia, Direito, Etnografia, Linguagem e História, publicados em revistas e jornais, nomeadamente no "Diário do Alentejo", e também em livro.

 Alguns títulos traduzem o amor do beirão pela região à qual se encontra inextrincavelmente ligado por laços de família: Da Serra da Estrela ao Campo de Ourique – Memorial da Antiga Transumância, de 2001, e Estepe das Abetardas (Crónicas do Alentejo), de 2003.

Para breve está a publicação de A Terra e o Mar (crónicas diversas), uma edição do Instituto Politécnico de Beja.





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