Burlões nunca são punidos pela falsa identidade
Casos como o do falso herdeiro do Pingo Doce apenas levam a acusações por crimes como a burla ou falsificação de documentos. Usar nome diferente do verdadeiro não é ilícito
RUTE COELHO
José Carlos Martins, hoje com 43 anos, fez-se passar durante mais de uma década por “Ricardo Martins”, herdeiro do grupo Jerónimo Martins, detentor da cadeia de supermercados Pingo Doce. Mas não é por ter usado uma falsa identidade que teve problemas com a justiça.
O Código Penal português, ao contrário de outros códigos, como o brasileiro, por exemplo, não prevê o crime de falsa identidade.
A utilização de um nome falso só é punida, em Portugal, quando visa obter algum benefício ou proveito material, explicaram fontes judiciais ao DN. Ou seja, se alguém se limitar a dizer aos outros, em círculos sociais ou familiares, que é herdeiro do último rei da Conchichina, nada lhe acontece. Só pode ser investigado e punido se, com esse falso título, obtiver lucros aproveitando-se da credulidade alheia.
Penas podem ser pesadas
Por isso os burlões que usam identidades falsas, como o capitão Roby ou a generala Teresinha (ver caixa) são normalmente apanhados pelos crimes de burla qualificada em conjunto com, outros crimes como falsificação de documentos ou uso de documento de identificação ou de viagem alheio.
No Algarve um burlão bem falante e sofisticado, Arlindo da Palma Martins, foi condenado a 13 anos de prisão na comarca de Faro pelos crimes de burla qualificada e falsificação de documentos e em Loulé apanhou mais sete anos pelo mesmo tipo de crimes, adiantou fonte judicial. Depois do cúmulo jurídico feito, este burlão, que se fez passar por empresário rico usando vários nomes, “poderá ter de cumprir uma pena até 16 anos, tão pesada como a de um homicídio qualificado”, sublinhou a fonte.
O falso herdeiro do Pingo Doce está acusado pelo Ministério Público de burla qualificada * por ter sacado quatro milhões de euros a empresários e futebolistas a pretexto de investimentos que iria fazer com elevados retornos, como noticiou ontem o JN.
O simples crime de burla nem sequer permite a aplicação da medida de coacção mais gravosa, a prisão preventiva, porque a moldura penal é de três anos de prisão.
Só quando o prejuízo patrimonial dos lesados é muito elevado e quando se prova que o suspeito faz desses esquemas um modo de vida, é que se pode acusar um mestre do engodo do crime de burla qualificada, crime cuja pena pode ir até oito anos de prisão.
“O crime que está mais associado ao uso de uma identidade falsa, no nosso ordenamento jurídico, é o de uso de documento de identificação ou de viagem alheio”, referiu uma fonte do Ministério Público.
Na prática é “um crime em concurso aparente com a burla”. Ou seja, quem o pratica acaba por ser punido apenas pelo crime de burla “porque normalmente os burlões usam documentos alheios”.
A jurisprudência entende que o crime de burla e falsificação de documentos estão em concurso real, ou seja, o suspeito tem de ser punido pelos dois crimes.
3 PERGUNTAS A…ANTÓNIO VENTINHAS
Procurador, dirig. do Sind. dos Magist. do Minist. Público
No Código Penal português não está tipificado o crime de falsa identidade. Porquê ?
“Usar um nome falso não é, por si só, um crime”
Bem, o legislador entendeu que a utilização de um nome falso só deve ser punida quando visa obter um benefício qualquer. Por isso acaba por se inscrever na burla e também na falsificação de documentos.
Em que situações é possível um burlão ser condenado a uma pena mais elevada do que os cinco anos de prisão?
Quando são indiciados por várias burlas qualificadas. Nesses casos podem arriscar 10 a 16 anos de prisão, consoante o número de crimes e o cúmulo jurídico.
A investigação é difícil?
Sim porque em muitos destes casos é preciso a prova pericial a documentos falsificados, o que demora meses ou anos.
Diário de Notícias 2011-12-27
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